Por André Cintra
No meio do caminho, havia uma pandemia. Anna Maria Martins Soares, a Anna Martins – que completa 80 anos nesta sexta-feira (1/5) – está bem de saúde, mas não poderá comemorar o aniversário da maneira como planejou. O rápido avanço do coronavírus no Brasil, sobretudo em São Paulo, impediu a realização da festa que estava prevista para familiares, amigos e camaradas. Por causa do necessário distanciamento social, teremos de esperar mais um pouco para revê-la e abraçá-la – não para homenageá-la.
Anna faz anos no Dia Internacional do Trabalhador – mas a boa coincidência não para por aí. Filha de mãe e pai portugueses (Vitória Nunes Martins e João Martins), ela nasceu em 1º de maio de 1940, no Largo de Pinheiros, em São Paulo. Na mesma data – só que no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro –, o presidente Getúlio Vargas anunciou uma das mais importantes conquistas dos trabalhadores brasileiros: o decreto-lei que regulamentava o salário mínimo.
O Censo de 1940 indicava que São Paulo tinha 1,3 milhão de habitantes – população dez vezes menor que a atual. As chaminés das fábricas ocupavam cada vez mais a paisagem urbana. Mas Anna, antes de virar operária, conheceu a roça, onde trabalhou dos 6 aos 13 anos. Só então foi estudar.
Seu pai, simpatizante do comunismo, gostava de citar um provérbio português: “Na casa deste homem, quem não trabalha não come”. Pois a vida na casa da família sofreu uma reviravolta justamente quando João Martins, acometido por uma grave cirrose, morreu precocemente, deixando a esposa de 37 anos com dez filhos – Anna era a terceira. As filhas mais velhas se desdobraram a aprender serviços, como sapataria e costura.
“Anna Martins carrega no DNA o gene mais puro das trabalhadoras e dos trabalhadores. Essa disposição para a luta vem desde a infância difícil na roça, agravada com a morte precoce do pai, que deixou uma prole numerosa nas mãos de sua mãe, dona Vitória”, resume o advogado Arnaldo Bispo do Rosário, amigo há décadas de Anna. “Bem-aventurado quem, como nós, teve a ventura e a alegria de militar, trabalhar e aprender com essa mulher firme, honrada e generosa, como poucas pessoas que conhecemos.”
Da Ação Católica ao PCdoB
Um dia, enquanto voltava a pé do trabalho, a adolescente Anna Martins passou em frente à Faculdade de Medicina da USP, na Avenida Doutor Arnaldo, e ouviu manifestantes bradarem uma palavra-de-ordem: “O Petróleo é Nosso”. O protesto era parte da memorável campanha que culminou na criação, em 1953, da Petrobras. Foi a primeira vez que Anna se interessou por política.
Com 16 anos, funcionária de uma fábrica de alimentos, ela conheceu integrantes e atividades da JOC (Juventude Operária Católica). A causa dos trabalhadores e do povo já sensibilizava a jovem Anna, que passou a militar no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e ingressou na Ação Católica – da qual a JOC era um dos braços. Começava a nascer uma liderança.
É o tempo em que estudantes católicos se engajam no Movimento de Educação de Base, instituído pelo governo João Goulart e voltado à alfabetização de adultos. Ao participar de projetos do gênero, Anna firma ainda mais o viés social que marcará sua trajetória. Não por acaso, ela decidiu estudar Serviço Social na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), onde se formou em 1968.
Àquela altura, já namorava Antônio Almeida Soares, o Ton, um ex-padre 11 anos mais velho, que ela conhecera na Ação Católica. Ton era um dos religiosos mais perseguidos pelo regime militar em São Paulo, a ponto de ter mudado cinco vezes de nome e de RG. Sem apoio de padres e lideranças católicas, renunciou à batina. Anna e Ton se casaram no final de 1970, quando já estavam vinculados à AP (Ação Popular).
Mesmo na clandestinidade, correndo risco de morte, o casal apoia outros companheiros que estão na mira da ditadura. É o caso do metalúrgico Vital Nolasco, um “subversivo” marcado pela participação nas heroicas greves de Contagem e Osasco, em 1968. Vinte e cinco anos depois, os dois comporiam a bancada de vereadores do PCdoB na Câmara Municipal de São Paulo.
“Conheci a Anna em 1969. Ela participava do grupo de jovens da igreja e me ajudou muito na minha adaptação em São Paulo. Destaco o fato de ela ter arrumado uma ‘família’ que me acolheu por algum tempo”, afirma Vital. De acordo com ele, a casa de Anna, na zona sul, era o ponto onde militantes se reuniam e pernoitavam. De lá, saíam de madrugada para fazer panfletagem, “numa época em que, se alguém fosse preso, com certeza não sairia vivo”.
Uma evidência da crescente repressão se deu na própria família Martins. Um dos irmãos de Anna, Elídio, foi preso e barbaramente torturado por 21 dias. Mesmo tendo pouco envolvimento com a luta contra a ditadura, Elídio não entregou ninguém. Mas a brutalidade da repressão contra ele deixou claro que era a hora de Anna e Ton saírem de São Paulo.
O casal se transferiu clandestinamente para a cidade de Livramento de Nossa Senhora (BA), uma das bases de apoio à Guerrilha do Araguaia. Viviam com um salário mínimo por mês e passavam fome. Ton, inicialmente trabalhando como borracheiro e vendedor de peças, perdeu 11 quilos. Anna, mesmo grávida da primeira filha do casal, Juliana, emagreceu sete quilos em plena gestação.
Nesse período, a Ação Popular passou a se chamar Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e, em seguida, aprovou a fusão com o PCdoB, ao qual Anna e Ton aderiram. “Tínhamos uma base de cinco pessoas na Bahia para fazer o trabalho político. A gente fazia reuniões na cachoeira”, contou Anna, no ano passado, durante uma das entrevistas que ela concedeu para um livro sobre Ton. “Depois que mataram o Lamarca, a uns 20 quilômetros de lá, tivemos de vir embora. Nos avisaram que íamos ser todos presos – já tinham os nossos dados.”
Já na condição de filiados ao Partido, Ton e Anna regressam para São Paulo, em 1972, passando a residir na zona leste. Anna reencontra o chão da fábrica e chega a trabalhar, por exemplo, em duas unidades da Philco. Pouco depois, vira professora do Mobral. Em 1976, dá à luz seu segundo filho, Pedro.
Líder comunitária
Foi no movimento popular que a militância de Anna Martins ganhou visibilidade e deslanchou na década de 1970. Às voltas com as lutas comunitárias e pela moradia, sobretudo nos bairros de A.E. Carvalho e da Ponte Rasa, Anna emerge como uma das coordenadoras do Movimento contra a Carestia (1973-1981). Às batalhas comunitárias, somavam-se outras, como luta contra a ditadura militar e o trabalho de construção do PCdoB em bases populares.
“Sem dúvida, Anna Martins jogou um importantíssimo papel na tarefa de ampla mobilização de massas contra a ditadura militar e em defesa dos direitos dos mais pobres moradores da periferia de São Paulo”, analisa Renato Rabelo, presidente da Fundação Maurício Grabois. Segundo Renato, a luta contra o custo de vida atingiu o auge em 1978, quando as lideranças conseguiram reunir 1,2 milhão de adesões a um abaixo-assinado. “Anna participou de inúmeros mutirões de coleta de assinaturas em toda a cidade.”
Entre outras campanhas, Anna Martins liderou mobilizações pela Anistia, pelas Diretas-Já e pela Constituinte. Nos anos 80, elegeu-se presidente da Facesp (Federação das Associações Comunitárias do Estado de São Paulo) e foi uma das fundadoras da Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores).
Contemporâneo de Anna em “memoráveis batalhas e lutas de caráter reivindicatório do povo da periferia”, João Bosco, ex-presidente da confederação, enfatiza alguns desses momentos. “Participamos, com destaque, da fundação da Conam, em 1982. Sob a justa orientação do Partido, compusemos a principal força dirigente da entidade e as suas lutas, de 1986 a 1989”, afirma. “Colhemos mais de 1 milhão de assinaturas em emendas populares dentro do processo de elaboração da Constituição Cidadã de 1988.”
“Atuamos juntos numa região proletária de São Paulo, o Burgo Paulista, que era perto da Ponte Rasa. Tivemos contato com vários jovens operários e, quando vi, já estávamos construindo o PCdoB com todos esses jovens”, lembra João Batista Lemos, ex-dirigente da JOC e ex-secretário de Movimento Sindical do PCdoB. “A Anna deu exemplo para nós de construção de base, de luta, de resistência à ditadura, de coerência entre a prática e teoria, entre a nossa causa e seu modo de viver.”
Nádia Campeão, dirigente nacional do PCdoB, também enaltece o trabalho de base de Anna: “Quando vim militar em São Paulo, em 1990, aprendi como vivia, lutava e se organizava a população trabalhadora e moradora da periferia. E tudo o que aprendi foi através do trabalho realizado pelos nossos camaradas da Zona Leste, liderados pela Anna Martins, pelo Antonio Soares e pela Zorilda”, diz. “A Anna conjuga uma inabalável confiança na luta popular, com uma enorme habilidade em se comunicar com as pessoas simples e descobrir, a cada momento, qual é o passo que deve ser dado para mobilizar e organizar o povo.”
No parlamento
A luta feminista foi outra frente de atuação de Anna. Em 1975, Ano Internacional da Mulher, ela se empenhou em viabilizar a participação brasileira na 1ª Conferência Mundial das Mulheres, na Cidade do México. No ano de 1988, foi uma das responsáveis pela fundação da UBM (União Brasileira das Mulheres). Sete anos depois, foi delegada à 4ª Conferência Mundial da Mulher, na China – desta vez, já na condição de vereadora paulistana.
Os mandatos combativos e populares de Anna Martins – que se elegeu três vezes para a Câmara Municipal, além de uma para a Assembleia Legislativa – viraram referência e fizeram história. Até o início dos anos 90, quando o PCdoB chegava aos 70 anos, nenhuma mulher filiada ao partido havia exercido o cargo de vereadora em São Paulo. Elisa Kauffmann Abramovich, eleita para a 1ª Legislatura da Câmara Municipal, em 1947, sequer tomou posse, devido à arbitrária cassação do Partido Comunista do Brasil.
Coube a Anna Martins quebrar essa escrita. Em 1992, com quase 13 mil votos, ele se elegeu vereadora. Virou não apenas a primeira mulher comunista a assumir o cargo – mas também o nome mais longevo do PCdoB na Câmara, onde permaneceu por dez anos (1993-2013). Lutou pela democracia e contra a corrupção dos governos Maluf/Pitta. Defendeu mulheres, crianças e adolescentes. Abraçou o Movimento pela Universidade Pública da Zona Leste e lutou contra a instalação de um cadeião no terreno da Avenida Águia de Haia no lugar onde existe hoje uma Fatec.
Nenhum aspecto, porém, teve destaque maior do que sua dedicação às causas comunitárias no Legislativo, em especial a defesa do direito à moradia digna e os avanços nos processos de regularização fundiária de áreas ocupadas. Que o digam as comunidades do Primeiro de Outubro e do Keralux, ambas na zona leste – símbolos da pareceria vitoriosa entre o mandato de Anna e a população mais vulnerável.
Altair Freitas, secretário de Formação do PCdoB São Paulo, foi chefe de Gabinete de Anna por cinco anos. Em sua opinião, o “engajamento social profundo” expôs Anna a correr riscos. Ele cita um violento processo de reintegração de posse na zona leste, em 1999. “Foi muito triste por um lado, mas foi profundamente edificante ver aquele povo sofrido encontrando em Anna Martins um amparo, uma força, uma pequena parcela do poder público ao seu lado, num momento de intensa violência. Muitas outras situações semelhantes ela vivenciou ao longo da vida”, afirma.
Lídia Correa, que foi vereadora com Anna em São Paulo, compartilha dessa opinião. “Anna Martins era uma das mais combativas, firmes e atuantes lideranças políticas. Sempre atenta e presente na defesa da democracia, dos direitos, das mulheres e do povo, era respeitada e admirada por todos e todas que a conhecem pela sua vida e sua atuação”, afirma Lídia.
“Não posso deixar de lembrar, com saudades, de vários momentos em que estivemos e atuamos juntas, como nossa viagem à China, na Conferência de Mulheres. Ou dia em que você, sempre observadora, olhou para mim e perguntou o que eu tinha no meu rosto. Eu estava com uma paralisia facial, que deu trabalho para tratar”, afirma a ex-vereadora, hoje dirigente do PCdoB.
Em 2002, Anna Martins recebeu mais de mais de 68 mil votos e se elegeu deputada estadual. Foi outro feito histórico: o PCdoB não tinha representação feminina na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) desde 1947, quando a cassação da bancada comunista interrompeu o breve mandado da comunista Zuleika Alambert. Como deputada, reforçou o combate do PCdoB contra as privatizações dos governos do PSDB e na valorização dos trabalhadores, especialmente os servidores públicos.
Os últimos anos
O primeiro ano do mandato de Anna Martins na Alesp coincidiu com o agravamento do estado de saúde e a morte de Ton, com quem ela estava casada havia mais de três décadas. Ton faleceu em 3 de novembro de 2003, aos 74 anos, vítima de câncer na próstata. Pedro, o filho caçula, recorda os meses finais: “Ele dependia de todos nós, 24 horas, todos os dias. A minha mãe e a Ju, foram grandes guerreiras. Emagreceram e sofreram muito devido ao grande sofrimento dele”.
Anna encerrou sua trajetória parlamentar em 2007. Fora do Legislativo, voltou a dar aulas e se aposentou – mas não da luta. Está envolvida com entidades de bairro e de mulheres, com frentes em defesa da democracia e com a presidência do PCdoB Ermelino/Ponte Rasa. Em 2 de maio de 2019, um dia depois de completar 79 anos, Anna Martins foi homenageada pela Câmara Municipal de São Paulo. Uma sessão solene, por iniciativa do vereador Cláudio Fonseca, reuniu mais de 250 pessoas e lotou o Salão Nobre.
“Anna Martins é uma grande liderança”, frisa o ex-deputado estadual Nivaldo Santana, que dividiu bancada com Anna na Alesp. “Sua vitoriosa trajetória política passa pelo Movimento contra a Carestia, os mandatos de vereadora e deputada estadual, defesa dos direitos das mulheres, além de ser uma das principais dirigentes do PCdoB de São Paulo. Chegar aos 80 anos com todo esse vigor e disposição é um fato que merece ser celebrado!